A Saga de Guilherme, o Príncipe Negro. Parte XII

O Rei dos Bruxos


Uma redoma de perversidade havia aprisionado Guilherme, o Rei Negro, logo após o incidente ocorrido no covil da Feiticeira da Floresta dos Trolls. Agora, o monarca perambulava pelo salão do reino vestindo um roupão negro e, falando consigo mesmo. O seu interesse devotava-o ao ocultismo e astrologia, há muito tempo vinha assustando os seus mais fieis vassalos, pois, comentários macabros e ditos com um temor descomedido, transitavam em torno da figura do Rei sobre a Colina dos Bruxos. Um terror surdo pairava sobre as mentes supersticiosas dos camponeses e aldeões. A Batalha contra as Tribos Bárbaras do Sul, tinha causado uma tremenda má-fama à figura do taciturno Guilherme. Pela Corte do Rei, boatos de sacrifícios e rituais envolvendo tarô e tantas outras artes ocultas, eram cochichados em segredo por todas as esferas do séquito real.
Lentamente, Annabel de Liz deixava-se inundar numa melancolia perniciosa. Era o seu nono mês de gestação, quando o herdeiro de Guilherme veio ao mundo, envolto pelas trevas do seu sorumbático progenitor. O parto fora realizado pelas mãos nodosas do velho Seth, outrora responsável pelo parto do Príncipe Negro. Auxiliado por Tracius, o Aprendiz da Tradição, aos poucos o bebê foi parido. O nascimento da criança fora totalmente negligenciado por Guilherme. Naquela mesma noite, estrelada e calma, um fato de natureza sinistra ocorria. Naquela mesma noite, o Rei estava enfurnado na Torre dos Cronistas do Reino. Entre pergaminhos, manuscritos rúnicos, e tubos de ensaio com substâncias alquímicas, Guilherme extasiava-se com a criatura pavorosa concebida pelo seu estudo, e conseqüente, aperfeiçoamento  de seu conhecimento diabólico. Invocando saberes nefastos, misturando essências secretas, lendo tomos de alquimia desvirtuada, Guilherme criara uma criatura de aparência tão sinistra e hedionda, quanto os trolls, duendes e tantos outros serviçais da feiticeira. Por meio de seus devaneios malévolos, Guilherme criara um animal de características fisiológicas inomináveis. Nenhum registro no bestiário do reino catalogara criatura de semelhante e, tenebrosa, natureza. A criatura tinha um pêlo ralo. Era quadrúpede e do porte de um mastim napolitano em sua envergadura, porém, era magra, com suas vértebras ameaçadoramente expostas. Junto do pêlo ralo, escamas de um brilho oleoso e tons arroxeados cobriam-na. Seu rabo, ou o que quer que fosse, era rígido e articulado, como o rabo de um escorpião. Sua cabeça hibrida, apresentava o crânio de um cão, mas os olhos assassinos eram de uma ave de rapina.
Foi assim que a criatura resultante dos experimentos sórdidos do Rei Bruxo, veio à nascer no mesmo dia, na mesma hora em que seu herdeiro, Frederico, mais tarde chamado de “Príncipe do Bruxos” nasceu.
Do alto da Torre dos Cronistas do Reino, as gargalhadas triunfais e malditas de Guilherme ecoaram por todo o pátio do castelo, chegando até o quarto onde Annabel descansava do desgastante trabalho de parto, tendo ao seu lado, o filho. Ouvindo o eco de uma gargalhada tão profana e descomedida, o sábio Seth manifestou-se:
- Tempos nefastos ainda repousam sobre a estirpe do rei Hesdra, o Urso Cinzento. Guilherme, outrora o arguto e perspicaz Príncipe Negro, paladino da Verdade, o Nobre Ungido, hoje, é um ser maligno e depravado. Por isso, temo pelas trevas que insistem em seguir essa criança.
Então, o jovem Tracius pôs a mão direita sobre os ombros ossudos do velho mestre na tradição e, disse-lhe:
- A Tradição desse reino foi condenada a mais perpétua ruína, porém, prevejo um futuro glorioso para essa criança. Dele virá a salvação desse reino...
- Guilherme um dia foi um homem glorioso, e Deus sabe como ele ainda é, no entanto, não espero que Frederico siga os passos do pai. Apenas peço virtude para o meu filho amado. Que ele seja ungido Frederico, o Príncipe Perfeito.
Apesar dessa denominação dada por Annabel, os desígnios misteriosos e autoritários de Guilherme acabaram por batizar a criança com as palavras mais dissonantes que um nobre poderia ter: Frederico, o Príncipe dos Bruxos, assim foi chamado para toda a eternidade.

A dança dos cavaleiros


Há também que se contar como um inverno vigoroso caiu sobre o reino de Guilherme. O tempo lento e lacerante, havia levado a juventude do já envelhecido monarca. Sua face começava a apresentar rugas em abundância, seus cabelos embranqueceram em grande quantidade. Alguns nobres diziam que os estudos de magia negra, vinham sugando a vivacidade do Rei Negro, que agora andava meio encurvado, com um fardo de natureza mais perniciosa sobre as costas. E Annabel notava todas essas mudanças, enquanto cuidava zelosamente do seu filho Frederico, sempre esquecido pelo pai.
Então, num dos seus acessos de esquisitice, o rei Guilherme resolveu convocar um torneio de cavaleiros na praça do Castelo sobre a Colina. Seria uma forma, ainda que dissimulada, de mostrar seu contentamento com o recém-nascido herdeiro, assim como era um modo eficiente de tirar as atenções dos uivos, e lamentos provenientes de sua criatura hedionda, cada vez mais forte e maliciosa, aprisionada nas catacumbas secretas do castelo.
Chegado o dia do torneio entre os campeões dos senhorios juramentados ao rei, grande foi o alvoroço em todo o reino. Tito Lívio, embora já fosse um homem de meia-idade e, de elevada patente militar, inscrevera-se no torneio para digladiar com os jovens cavaleiros recém-investidos. Como era de se esperar, sua vitória sobre os outros adversários foi inevitável. Ao fim do dia, apenas um cavaleiro de armadura e brasão desconhecido, havia se igualado a Tito Lívio nas vitórias. Então, o torneio final foi travado entre os dois exímios guerreiros.
Como todos no reino sabiam dos hábitos do monarca de se ausentar de cerimônias oficiais, para cumprir seus desígnios de natureza reclusa, Tito Lívio não desconfiou que o seu adversário em questão, era na realidade o próprio rei Guilherme, apenas oculto por um elmo e uma armadura. A luta dos dois, como ficara estabelecido, seria através do manejo de espadas longas.
Quando o duelo começou, Tito Lívio manteve a retaguarda, esperando e analisando o cavaleiro anônimo. Sentiu um tremor mórbido em sua cervical ao perceber como o outro manejava a espada com uma notável maestria. Entretanto, Tito Lívio não calculou o ardil engendrado pelo misterioso cavaleiro, não esperava que o outro estivesse munido de artes mágicas. Balbuciando feitiços, Guilherme fez o fiel Tito Lívio ter sua mente invadida por alucinações, cada vez mais intensas, fazendo-o perder a postura de combate. Então, com uma ira cega e alucinada, Guilherme enfiou sua espada no flanco esquerdo da armadura do marechal Tito. Este, ao receber o golpe mortal, caiu pesadamente no chão arenoso da batalha. A armadura prateada e reluzente, ficou coberta por camadas de sangue caindo em profusão. A platéia, até então apreensiva com os rumos do combate, foi impelida por uma indignação, pois o combate devia ter sido realizado com armas sem lâmina. A platéia, formada por camponeses, burgueses e nobres, gritava em uníssono:
 - Traição! Traição! Traição!



Entre os membros do séquito real, Caio Marco, Chefe da Guarda Real, ordenou que os soldados prendessem e ali mesmo, revelasse a identidade o cavaleiro misterioso, e cruel. Os soldados aproximaram-se do cavaleiro anônimo sentenciando as ordens de Caio Marco. Então, para a surpresa mortal de todos os espectadores do combate, Guilherme, o Rei Negro, disse enquanto tirava o elmo:
- Eis me aqui! Servos infiéis! – Sua voz era desdenhosa e mórbida. – Prendam  a mim, que sou o Rei Ungido pelo Bispo da Abadia de Almodávar, o rei que teve a espada ungida pelos Clérigos da Ordem da Espada! De todas essas vãs denominações, eu exijo que me chamem de Guilherme, o Rei dos Bruxos!
Caio Marco mandou que os seus soldados escoltassem o rei dali, pois a turba estava inquieta e indignada com o espetáculo pavoroso do rei. Muitos chegaram à conclusão de que o monarca estava completamente insano. Ferreiros, moleiros, todos confidenciavam nas tavernas, relatos da loucura do rei. Como ele tinha enlouquecido após a Batalha contra as Hordas Bárbaras do Sul. Após ouvir a manifestação pública do rei, Annabel de Liz resolvera sair da platéia com o pequeno Frederico. Mais tarde, ao ouvir o que se sucedera, o ancião Seth soltou um longo suspiro e, deu uma baforada em seu cachimbo, dizendo:
- Guilherme é o Soberano. Não cabe aos seus súditos dizer se suas ações são justas ou injustas. Como Soberano Revelado por Deus, suas medidas políticas e morais são válidas, pois ele, e somente ele, detém o Poder do Estado metamorfoseado nas suas Vontades de Poder.
O pupilo Tracius replicou:
- Mas isso não é justo. Guilherme age em detrimento da Justiça.
- Ha, meu jovem aprendiz... Tu e tens a tendência equivocada de achar que, Justiça é algo tão exato quanto um sentença matemática. Tu me vens falar de algo ideal, mas eu lhe mostro a realidade. Por mais que os últimos atos do Soberano tenham sido vis e nefastos, não cabe aos seus súditos questioná-lo. 
- Esse assassino que o senhor está defendendo, foi o algoz do nobre Tito Lívio, homem honrado e, que nunca conspirou contra o seu rei, porém, foi covardemente morto. - Disse com impaciência, o jovem Tracius.
- Tracius, aprenda a dominar seus instintos irracionais. Quando digo que as atitudes de Guilherme tem sido o que são, isentas de juízos de valor, quero figurar como a validade do seu Direito Natural de Soberano está acima de nós todos. Não te esqueças que os Reis sobre a Colina são os criadores da Magna Carta desse reino. A Magna Carta, por si só, já basta para explicar que a validade está acima da Justiça. Não te esqueças das nossas lições de política... Uma norma pode ser Válida sem, necessariamente, ser Justa.
Logo após esse diálogo, Tracius retirou-se para seus aposentos, onde iria estudar pergaminhos de Tratados de Política e Filosofia.
 Um réquiem fora encomendado para o honroso, Tito Lívio, primeira vítima da ira descomedida do Rei dos Bruxos.




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