Um conto (A vida tem dessas).

O Tuco

Lucas Albuquerque, ou melhor dizendo, “Garrincha”, como era chamado pelos amigos nas peladas de fim de semana, ia andando até o carro no estacionamento do escritório de advocacia, onde trabalhava. Sexta-feira, Lucas tinha acabado de passar o ponto, quando escutou um bip de mensagem no celular. Estava escrito no whatsapp: O Tuco morreu hoje à tardinha. Avisa a galera mais distante, cara; até o velório, tchau. A mensagem era do Diogo, amigo da época da escola e vizinho do Lucas desde a infância. Então, Lucas abriu o carro e entrou, pensou um pouco, lembrou do imenso engarrafamento que teria que enfrentar do Bairro do Renascença até o cemitério onde estava ocorrendo  o velório, no outro lado da cidade, e disse: “Vou ligar pra esse pateta”. Ligou para o Diogo.
- Fala, cara... – Diogo não falava nada, parecia estar emocionado.
- Esse bebum do Tuco. Morreu de cirrose, né? – falou Lucas, também emocionado.
- Não, cara, a mulher dele me falou que ele morreu no banheiro.
- Mas como assim?
- Foi encontrado estirado no banheiro da suíte do casal. Ao que tudo consta, ele escorregou num sabonete e... pá! Bateu com a cabeça no vaso sanitário.
- Caramba... – Então, agora que eu tô saindo do trabalho, vou pegar um engarrafamento monstro. Diz pra turma do futebol que eu vou me atrasar.
- Tudo bem.
Lucas Albuquerque encerra a ligação. Olha o rosto no retrovisor do carro, seus olhos estão marejados. Vê que já não é mais tão novo como gostaria. Tem vinte e nove anos, segundo ele, de puro desgosto e frustração. Então, liga o carro e parte rumo ao engarrafamento. Mas não antes de comentar com seus botões: “E todo mundo achando que esse malandro ia morrer do fígado. Essa vida... tem dessas coisas mesmo.”

O velório




Ao chegar no salão cheirando a vela e morte, Lucas foi ao encontro da viúva, Maria Eduarda. Abraçou-a e disse frases já prontas de superação e de condolências – tudo, é bem verdade, retirado das suas referências em livros de auto-ajuda, nada que um Augusto Cury ou Padre fábio de Melo não tenha dito... Após ter dito o inevitável “Meus pêsames”, passou a vista em todo o salão, reconheceu alguns amigos do tempo da escola, alguns da universidade, e outros que a vida, em suas mais diversas imprevisibilidades, tinha sido capaz de forjar encontro entre estranhos. Foi então até o caixão. Olhou o rosto pálido do defunto entre uma coroa de flores. Tuco era um homem de vinte e sete anos, na adolescência fora colega de escola de Lucas e do Diogo. Viu como o defunto ainda conservava sua expressão de bonachão, passou a mão na testa lívida do amigo morto, e foi na direção do grupo de quatro amigos, onde Diogo estava no meio deles.
- Há quanto tempo, Lucas Albuquerque! – disse Vidigal, colega do ensino médio, um sujeito de porte robusto e de barriga protuberante, certamente proveniente da sua paixão por cerveja.
- Sim, Vidigal. – Respondeu Lucas enquanto ia cumprimentado o restante do grupo.
- Está fazendo o que tanto da vida, rapaz? – Quis saber o inquiridor Vidigal.
- Formei em direito há uns três anos, e desde então venho trabalhando num escritório de direito trabalhista.
- E tá ganhando muito dinheiro? – quis saber Mateus, também colega dos tempos de escola.
Embora Lucas tivesse se aborrecido com uma pergunta tão inconveniente, respondeu:
- Digamos que paga as minhas contas...
Percebendo a pausa constrangedora, Diogo comentou:
- Mas o Tuco morreu muito novo, cara. Ainda deixou uma filhinha pra criar... coitada da Maria Eduarda.
Todos balançaram pesarosamente a cabeça, como que compreendendo a ausência permanente do Tuco: companheiro de partida de futebol no fim de semana, companheiro de mesa de bar, e tantas outras manifestações sociais de amizade. Coisas tão banais como a morte impeliram a todos os amigos de velhos tempos a se reunirem naquele salão fúnebre.
- Mas rapaz, vocês reparam na Juliana? – Disse Pedro, um magricelo que havia estudado o último ano do ensino médio com Lucas, Diogo, Mateus e Vidigal. – Tá muito acabada.
- Mas que Juliana, cara? – Disse Vidigal enquanto corria os olhos em volta dos outros amigos do defunto no salão.
- A Juliana Amorim, a mina mais gata do colégio, pateta. – Galhofou Mateus. – E sim, ela realmente está muito acabada.
- Ouvi dizer que ela já tem uns dois filhos. – comentou Pedro.
- Isso deve ter feito ela envelhecer desse jeito. – Falou com propriedade, Vidigal.
- E o Otávio? – Falou Mateus. – Esse ai já está no quarto curso que começa e não termina. Começou com odonto, depois disse que não era o curso certo pra ele, depois fez vestibular pra direito, história, e em nenhum desses cursos deu certo.
- E ele ta fazendo o quê, agora? – Todos perguntaram.
- Teatro. O vi num semáforo fazendo malabarismos. – Disse Mateus.
- Essa turma da escola... – Disse Vidigal com um tom nostálgico na voz.
- Eita, lembrei aqui das presepadas do Tuco, disse Mateus. – Vocês ainda se lembram daquela vez que ele foi vocalista da nossa banda de garagem?
- Sim! E que tempo bom, aquele. – Foi o pensamento geral no grupo.
- "Asquelmintos", esse era o nome da nossa bandinha de punk. – Disse Lucas. – Éramos verdadeiros vermes no som.
- Uma verdadeira moléstia sonora. – Sentenciou Pedro. Silêncio, todos olham para o caixão do Tuco. Mateus rompe o rápido princípio de silêncio:
- E a criançada, alguém aqui já é pai?
- Nem vem com besteira, cara! – Brincaram todos.
Lucas Albuquerque estava cansado, afinal, mal saíra do trabalho, recebera logo a mensagem trágica do Diogo e, logo viera para o velório. Definitivamente, ele não estava com ânimo para participar de uma fofoca em pleno velório. Disse com rispidez:
- Depois dizem que mulher gosta de fofoca. Vocês ai falando bobagens a torto e a direito...
Os outros, é claro, sentiram-se injustiçados e quiseram repreender Lucas por sua postura arrogante – Havia uma tensão desde a época da escola, mas nunca declarada abertamente de que, Lucas se “achava superior aos outros colegas”. Então, sempre o conciliador Diogo, disse:
- É esse pateta do Pedro, sempre vêm com essas.
- É mesmo, esse filho de Gorete! – Falou o grupo de amigos rindo em direção a Pedro. Desde a escola, eles tinham o costume maldoso de descobrir o nome dos pais do outro para depois ficar xingando a família da vítima. Pedro, era conhecido por “Gorete”, o nome de sua mãe, e principal motivo de chacota na época da escola.

Despedidas



Após terem rido, emocionado-se, os amigos foram deixando o velório aos poucos. O relógio apontava rumo às onze e meia, e o sepultamento seria na manhã seguinte, às oito horas. Mateus, como trabalhava no comércio de roupas, teve que sair bem mais cedo par fechar o caixa da loja, pois não confiava nos funcionários. Vidigal saiu junto com Pedro. Ficou só o Diogo conversando com o Lucas.
- Mas que figura era esse Tuco, ein? Nem parece que amanhã a gente ia ter um encontro na choperia do Salgado. – Falou melancolicamente, Diogo.
- Nem parece. – Disse o já distante e fatigado Lucas.
- E a vida, como vai indo?
- Tô levando...
- Sabe, Lucas? Tava pesando aqui: quando o João morreu naquele acidente de carro, pensei comigo mesmo: “Agora nós somos como veteranos da segunda guerra. Cada ano, nós vamos diminuindo, diminuindo até não ter mais nenhum veterano vivo. Somos uma espécie em via de extinção”. Do mesmo jeito, eu penso que é a gente com a turma da escola. Hoje foi o Tuco, mas amanhã... nunca se sabe.
- Você está filosofando muito, meu velho. – Disse Lucas. Depois, conversaram mais um pouco. Lembram de fatos engraçados. Lembraram de pessoas que haviam desaparecido de suas vidas. Alguns tinham se casado no exterior. Outras tinham agora uma família feliz. Outros eram viciados nas mais diversas coisas que um homem pode se viciar. Na volta para o condomínio onde morava, Pedro olhou as luzes neon da cidade, recordou da imagem do caixão aberto do Tuco. Entristeceu-se, passou a quinta marcha no carro e acelerou ainda mais. Por um leve descuido, seu carro colidiu com um caminhão de mudanças que quis ultrapassá-lo subitamente. Morreu na hora – como dizem os jornais – , o carro foi esmagado pelo caminhão desgovernado. O leitor vá logo me perdoando, mas gosto de pensar que a última impressão que Lucas Albuquerque teve foi  a de  ver as luzes do farol do caminhão ofuscando-lhe a visão, depois, morte certa. A vida tem dessas coisas...



Imagem do clipe: The importance of being idle - Oasis.
                       




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