A Saga de Guilherme, o Príncipe Negro. Parte II


As angústias do rei sobre a colina



Havia um rei de nome Hesdra, o Urso Cinzento. Ele vivia num castelo no topo da Colina dos Bruxos, em terras ermas do Vale dos Espinhos. Era estimado e temido pelos seus vassalos, assim com também, era implacável e cruel com seus inimigos. Era um homem de elevada estatura e porte hercúleo. Sua cabeleira densa e negra, era crespa como os espinhos, e sua barba frondosa caía sobre seu peito. Tinha olhos penetrantes e acinzentados como uma noite banhada sob o luar. Exímio guerreiro, manejava com maestria sua espada longa, forjada no raro aço de rubi. Conhecido por sua temperança, era sábio nos seus dizeres, austero em suas decisões.


A espada forjada no raro aço de rubi.
Ainda durante sua juventude, conquistou um imenso território, tendo os seus feitos cantados por todos os bardos dos reinos conhecidos. Entretanto, o rei sobre a Colina dos Bruxos, carregava um fardo secreto. Grande era a sua fama, fatigante era sua angústia. Longe da presença de seus súditos, distante do campo de batalha, o rei Hesdra, carregava um fardo. Secretamente, nos seus aposentos reais, o rei sentia um comichão, uma chaga ferir mortalmente seu ânimo; e aquele, de todos os seus inimigos, era o mais cruel, pois não podia ser visto, apenas sentia a dor rasgar as entranhas. Por inúmeras noites, seus servos e os guardas do castelo, ouviram os urros guturais oriundos dos recônditos do rei Hesdra, quando no meio dos seus acessos de loucura, ele golpeava contra as paredes, lutava contra si mesmo, desenfreadamente.

O herdeiro



Por longos anos o seu reinado foi se expandindo. A fortuna acompanhava-o por todas as batalhas. Muitos foram os reis que tombaram ante a impetuosa ira de Hesdra, o Urso Cinzento. E agora Hesdra tornara-se um homem de idade avançada, sua longa barba antes negra, ficara grisalha, seu fardo nunca fora extinguido. Então o rei decidiu tomar uma esposa para si, pois um rei necessita perpetuar sua estirpe guerreira. Tendo casado após um cerimônia gaudiosa, sua rainha concebe à luz ao seu herdeiro, que recebe o nome de Guilherme, o Príncipe Negro, pois, nascera numa noite tempestuosa, quando os raios cortavam as nuvens, e os trovões rompiam os tímpanos, somando impressões místicas em torno do nascimento do jovem nobre.
Agora há que se contar que, o rei glorioso ainda era atormentado por um tremor e temor. A medida que seu reino se tornava mais vasto, suas crises de melancolia, e os devaneios, vinham mais fortemente. Seus êxitos no campo de batalha não foram capazes de apaziguar seu espírito tumultuado, então, o rei vai se aconselhar com o mestre na tradição de seu reino, Seth, o alquimista.
Numa conversação secreta, o ancião recomenda que o rei vá até a feiticeira da Floresta dos Trolls, num território maldito, ao leste do reino de Hesdra. Pois somente ela poderia desvendar o mistério que tanto o inquietava. Pela primeira vez, o rei Hesdra, o Urso Cinzento sente medo.
- Isso é loucura. Não posso ir até aquelas terras nefastas. Onde trolls, duendes ardilosos, e magos inescrupulosos vivem. Seria uma jornada suicida. – Disse o monarca.
- Meu senhor, muitas são as veredas dessa vida. Por caminhos tortuosos nós devemos seguir, ora trilhando sombras, ora trilhando luz. No seu caso, sua vida está agrilhoada secretamente a algum fardo de natureza oculta para mim. Um espírito pestilento parece segui-lo desde o seu nascimento, e talvez, isso explique o seu sucesso nos inúmeros empreendimentos militares...
- Tu queres dizer que sou amaldiçoado? – Ah, mas tanto são os enigmas lançados pelos mestres na tradição! Ó, sábio Seth, não me mande até o meu algoz, pois eu sinto que dessa batalha, eu nunca mais irei retornar.
- Sua sina é ir além das fronteiras do mundo conhecido pelos homens sensatos. Agora, aceite sua sina, e vá até a Floresta dos Trolls, cruzando as terras do gigantes de gelo, e tantas outras adversidades tu terás que enfrentar.
Então, o rei Hesdra deixou seu filho, Guilherme, e sua esposa sozinhos, no reino que ele havia erigido a tanto custo. Designou o comando do reino sobre a Colina dos Bruxos, para sua esposa. Agora a rainha Helena, deveria assumir o trono, comandando todo o senhorio do rei, assim como, os tratados de suserania e vassalagem, firmados por seu esposo. Hesdra partiu rumo às terras desoladas no ermo leste. Por trinta dias, e trinta noites, vagou como um andarilho por entre vales, montanhas e prados distantes, sempre sem ser reconhecido pelos transeuntes. Para trás, o rei Hesdra deixou sua coroa. Levava agora seu fardo. Uma espécie de culpa, devorava seu espírito, e ele buscava uma redenção em lugares inesperados. Pois como dizia um sábio do reino: "Em tempos de paz, o homem guerreiro se lança contra si mesmo."

A feiticeira


E, passado um tempo, Hesdra encontrou o covil da feiticeira. Ficava no coração da Floresta dos Trolls, um lugar de vegetação fechada, onde os corvos e corujas prenunciavam atos sórdidos de maldade através de seus sons agourentos.
A casa da bruxa era feita de madeira. Um lodo pestilento pairava na atmosfera do lugar. Um cheiro de corpos em putrefação emanava dos pântanos da Floresta em volta. Então Hesdra bateu na porta de madeira enegrecida e podre. Bateu vigorosamente até que, a porta abriu-se sozinha. Deduzindo que era para entrar, ele foi adentrando com cautela nos aposentos, cheios de malícias e ódio. Olhou os livros de feitiços, viu candelabros e mais candelabros enferrujados por todo o recinto, até que um vulto furtivo apareceu atrás dele. Era a feiticeira da Floresta dos Trolls, ao contrário do que Hesdra imaginara, era uma mulher formosa, e de gestos graciosos de uma cortesã.
- Mesmo com todo o seu temor, você veio até aqui. Realmente, o relato dos seus feitos épicos que chegaram até mim por meio do sussurro das árvores, não é uma mentira. Você é corajoso... hummm – a feiticeira foi analisando o visitante com seus olhos de gata astuta. – Mas você não é tão prudente assim. Veio para minha casa sem nenhum artefato que pudesse lhe proteger das minhas artimanhas.
- Vim pela indicação do sábio Seth, um renomado mestre na tradição de meu reino.
- Eu sei, eu sei... Vamos evitar comentários dispendiosos. Conheço toda a sua história, Rei Hesdra, o Urso Cinzento, Rei sobre a Colina dos Bruxos. Reconheci você nas sua vestimenta de andarilho, logo que, entrou nessa floresta. – Enquanto falava, um brilho hediondo emanava dos olhos da feiticeira, revelando um saber místico oriundo do seu interior.
- Então tu sabes o meu fardo. Meu mal secreto.
- Sim, sim. E isso se chama “saudade”, você, e todos os seus herdeiros foram amaldiçoados com esse sentimento. Sob todos de sua estirpe, esse mal cairá como uma rocha que esmaga uma formiga. Por isso, apesar de todos os homens sentirem “saudade”, apenas você e seus descendentes são agrilhoados a uma profunda melancolia. As profundas solidões noturnas, e todo esse pessimismo incolor serão para sempre, o algoz dos homens de sua estirpe. Essa maldição está além dos meus poderes, apenas posso amenizá-la.
- Essa sensação de um vazio incolor e nefasto eu conheço desde sempre, porém, como não posso me livrar dessa maldição, poderia eu, entregar minha alma e meu corpo para ti, em troca da redenção dessa moléstia que cobre como um negro véu, meu filho? – Disse decididamente o rei, pronto a um sacrifício.
- Você me oferece sua exígua existência para que eu retire a tragédia de sua casa, porém, sua oferta é muito pouco tentadora para mim. Entretanto, como estou sem servos, tomarei seu corpo e sua alma para, que sejam meus servos. Em troca, seu filho será emancipado da “saudade”.
As duas partes entraram em acordo. A feiticeira tomou a existência de Hesdra para os seus planos nefastos, mas não cumpriu plenamente o acordo, pois era trapaceira e maliciosa em demasia para levar os termos do acordo com fidelidade. E foi assim que, o nosso rei, Hesdra, deixou seu corpo e alma, na casa da feiticeira, buscando salvar o filho de uma vida de angústias e tormentos provenientes de uma melancolia perniciosa chamada de “saudade”.
Então Guilherme, o Príncipe Negro, herdou o fardo de seu pai, e o ódio da feiticeira da Floresta dos Trolls.

Continua...





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