A Cavalaria e suas origens históricas: um breve ensaio.


Entre o Sagrado e o Profano


Imagem extraída do livro "A queda de Artur", do escritor J.R.R. Tolkien.


Etimologicamente, o termo cavalaria com os seus subseqüentes sentidos – entre eles, a designação de guerreiros montados a cavalo –, tem na sua origem semântica duas tradições: a tradição latina que denominava de milites os soldados, ainda sem distinção entre cavaleiros e infantes; enquanto que a tradição românica denominará de chevaliers. Com o passar do tempo, o termo milites passará por uma transformação, assumindo, no período medieval, a conotação de um ofício militar e de ordem, claramente influenciado pela cultura monacal. No entanto, somente no fim do séc. XI, o termo milites irá assumir um pleno significado. Sendo assim, nota-se que o termo não mais estará agregado aos soldados que combatem à pé (infantaria ou pedites), revelando a  crescente supremacia e valorização da cavalaria enquanto força militar entre os séculos XI e XIV.
No livro A Sociedade Feudal, Marc Bloch afirma que, durante a primeira idade Feudal, existia um grupo de homens armados e montados em cavalos, trajando um equipamento de combate completo, capazes de proteger um senhor feudal; estes homens, em sua maioria de origem anônima, oriundos das massas camponesas, por meio de um vínculo de direito, marcadamente alicerçado numa tradição jurídica oral e moral (consuetudinária), juramentavam proteção aos senhores feudais residentes, inicialmente, em castelos. Seria esse o primórdio dos cavaleiros.
Mas, como esses laços de fidelidade de natureza jurídica entre suseranos e vassalos surgiram? Vale ressaltar que o crescente avanço da cavalaria – não só enquanto regimento militar, mas também enquanto status social – , é resultado de uma sociedade cujo traço principal é sua tradição guerreira, como era a sociedade feudal. Portanto, pode-se inferir que a cavalaria acabou conquistando gradualmente um prestígio no seio da nobreza, ocorrendo, mais tarde, uma fusão entre cavalaria e nobreza. Esse avanço da Cavalaria a ponto de se mesclar com a nobreza é, em grande parte, proveniente dos torneios medievais, pois em tais ocasiões cavaleiros pobres podiam mostrar suas habilidades num simulacro – como eram os combates nesses torneios, ainda que fossem potencialmente mortais – , atraindo a atenção de um patrono abastado, ou acumular gradativamente riquezas em prêmios, assim como esse cavaleiro anônimo poderia atrair a atenção de um rica viúva. Em situações como essas, pode-se deduzir que aos poucos duas esferas sociais vão se fundindo – nobreza e uma classe de profissionais montados, a Cavalaria.
Um aspecto deveras importante para a assimilação gradual da cavalaria é a influência da ideologia da Igreja sobre esse grupo, que vai assumindo feições sociais. Esses combatentes vassalos aos castelões, segundo uma tese de Duby, durante o ano mil, acabam sofrendo a moralização eclesiástica, ou seja, a milites fica imbuída de salvaguardar a cristandade das hostes inimigas, e de promover a paz entre os seus pares. Nessa influência do sagrado sobre um agrupamento de origem laica (profana), percebe-se um das facetas existentes no processo de construção da Ordem da Cavalaria, visto que a Igreja numa tentativa de se firmar sobre a Cavalaria, acaba munindo-se de todo o seu aparato espiritual, isto é, aqueles que matassem outro cristão, estariam derramando o sangue do próprio Cristo – daí, pode-se notar a sanção espiritual ministrada pela Igreja enquanto Instituição de controle social por meio das mentalidades e das leis.
Todavia, antes de aprofundar a existência de traços de uma tradição cristã na Cavalaria, deve-se relatar a sua origem essencialmente secular. A Cavalaria, mais tarde tornada Ordem – reflexo da Igreja, ordo militium– , é originária da tradição guerreira dos povos germânicos, mostrando claramente a permanência do profano no medievo, apenas ocultado por um tênue verniz da cristianização do profano. O conjunto de cavaleiros prestando fidelidade a um nobre senhor, acaba passando por um processo de fechamento interno, isto é, um grupo com os rituais de iniciação e de identidade acaba surgindo entre um agrupamento até então informal; e é dessa ideia de diferenciação por meio dos rituais de iniciação que, uma carga identitária vai sendo firmada por meio do ritual de passagem laico, na Investidura – segundo uma análise de M. Bloch, uma palavra derivada de um verbo germânico arcaico referente a “bater”. Ao mesmo tempo que a investidura representa uma triagem entre um grupo, mostra a passagem de um jovem para a vida adulta, no caso, para que este se torne um cavaleiro. Porém, com o passar dos tempos, a origem daqueles que podem ser investidos Cavaleiro, acaba sofrendo uma retração na qual somente filho de pai cavaleiro e mãe nobre pode ser  iniciado – aqui, nota-se como Cavalaria e Nobreza vão se fundindo.
A Investidura que, entre outras palavras, é a celebração de um ritual de suma importância na vida de um cavaleiro, acaba recebendo um código de ética próprio, cada vez mais estruturado – a Igreja chega a usar a hagiografia de São Paulo, enquanto forma de legitimar os propósitos honoráveis da Cavalaria, afinal, São Paulo fora um cavaleiro também, daí a reverência prestada a esse santo quando eram lidas as suas epístolas. Ora, como fora dito no parágrafo anterior, tonalidades cristãs acabam tingindo o véu de natureza profana que, na construção da ideológica do cavaleiro (guerreiro laico) em um milites Dei (soldado de Deus), acaba cobrindo de um véu de idealizações em torno da Cavalaria – gerando uma “mitologia própria”. Aquele indivíduo armado com um equipamento completo, combatendo a cavalo e defendendo seu suserano, aos poucos, é convertido pela influência da Igreja, em um herói cristão. M. Bloch na obra A Sociedade Feudal, afirmara que “A santa Igreja investe no gládio juramentado do cavaleiro os ideais de defesa da viúva, órfão e o pobre.” Portanto, esse conjunto de cavaleiros adubados, vêem a liturgia cristã adentrar, sutilmente, no ordenamento interno a ponto de transformar a Cavalaria numa ordem cristã, uma instituição permeada de valores coexistentes e conflitantes do sagrado e profano, idealizados num modo de viver e pensar – pois o que seria o amor cortês, senão um reflexo de valores mundanos, e os mitos arturianos com os seus destemidos cavaleiros, senão um “um perturbador perfume de maravilhoso pagão?”, nas palavras Jean Flori no capítulo referente a Cavalaria do livro Dicionário Temático do Ocidente Medieval.
Uma vez que a benção do gládio foi trazida à baila, percebe-se como um ritual profano de entrega de armas, é alvo da tentativa da Igreja de transformá-lo num sacramento, visto que o gládio posto sobre o altar sagrado, é seguido de uma noite de oração e de expiação dos pecados do cavaleiro, assim como simboliza a benção da espada, utensílio essencial no oficio do guerreiro, durante o adubamento. A simbologia do gládio, numa sociedade marcadamente religiosa como era a medieval, figura a ânsia da Igreja por influenciar a Cavalaria, principais servidores do rei a quem devem fidelidade – daí, o por quê da frase “Os padres cingem os reis com o gládio”, pois mostra que, a Igreja deve ocupar a posição de ministrar os sacramentos, exclusivamente.
Logo, a Cavalaria é um termo deveras árduo de se conceituar, entretanto, ao longo dessa breve dissertação, nota-se como essa expressão oriunda do nosso imaginário quanto àquilo que denominamos de Idade Média, é um dos muitos aspectos da cultura medieval, mais interessante de se estudar. Inicialmente um agrupamento de guerreiros a cavalo, a Cavalaria vai se destacando até se tornar uma aristocracia, regulada pela cerimônia do Adubamento, a ponto de se fundir com a nobreza. Essa mesma Cavalaria desempenhou o papel de rechaçar as tropas do Islã na Guerra de Reconquista (na Espanha), participou das Cruzadas (como forma de penitência) e resistiu às tentativas da Igreja de institucionalizá-la plenamente. Suas representações medievais, alcançaram a contemporaneidade, por meio das projeções sobre a figura do “cavaleiro”; e mostrou a permanência de valores pagãos em torno da Cavalaria que, assim como tudo na cultura medieval, era fruto da fusão entre: sagrado e profano, pois o cavaleiro cristão, principal baluarte da Igreja, ainda traz junto de si uma essência belicosa do guerreiro “bárbaro”.




Referências bibliográficas que podem ajudar num aprofundamento do tema, caso o leitor tenha se interessado.

LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval/ Coordenação Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt; coordenador da tradução Hilário Franco Júnior. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2v.; 23 cm
·        O capítulo referente à “Cavalaria”, escrito por Jean Flori, foi fonte direta de embasamento para os discursos e apontamentos na dissertação.


BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. 1886-1994
·        Obra utilizada como embasamento para as discussões sobre a existência de valores profanos na Investidura. 





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