Velho
Lembro-me
da sua caminhonete cor vinho, escrito “chevrolet” na parte de trás. Meu avô e
esse carro eram meio que figuras indissociáveis, algo que marcou minha memória
no final dos anos 90. Ele tinha o hábito de lavar o carro todo domingo. Costumava
estacioná-lo em cima da calçada lá de casa, e passava a limpar a sua “D20”. A lembrança
que ficou é a do seu hábito de dobrar as pontas da calça, de modo a deixar os
seus calcanhares longos e magros expostos, no estilo cômico de “pega marreco”;
enquanto dobrava os punhos de sua camisa de tecido, manga longa. Esse era o
cuidado que o velho tinha para que não molhasse a roupa, afinal, depois disso
ele teria outros afazeres.
A
estória do meu avô com esse carro me ajuda a tentar entender, ou mesmo recordar
como era a sua vida naquela época. Quando eu passei a ter consciência dos fatos
ao meu redor – e aqui escrevo com base em supostas lembranças de um eu de 6 ou
7 anos de idade –, o cenário em que eu via meu avô era o de decadência, uma
certa melancolia.
Minha
avó dizia que ele havia tido um relativo sucesso econômico em sua pequena propriedade,
no interior de Codó, a famosa “Boi não berra”. Afirma ela que, após uma
política do governo do Estado do Maranhão, o fomento à cultura do arroz deixou
de ser prioridade, o que impulsionou na decadência do então modesto, mas
próspero negócio que meu avô tocava naquele tempo.
Tudo
isso era o que havia sido contado, era como se fosse um passado recente, em que
eu por ser tratado como o caçula do filhos, havia chegado tarde para vivenciar.
O fato de ser tratado como o caçula era uma licença poética, daquela que só o
primeiro neto herda.
Melhor
dizendo, dos três filhos do casal, eu era o primeiro neto, fruto de uma paixão
frívola do meu pai – o filho mais velho – com uma empregada doméstica. Como ambos
eram bem jovens e o meu nascimento ocorreu de modo fortuito, fui criado pelo
casal de velhos, meus avós paternos: Marise e Francisco.
Minha
avó, de quem eu herdei uma certa melancolia religiosa, é uma beata, nos moldes
antigos, filha de uma geração que tivera a oportunidade de cursar o ensino superior,
formou-se em pedagogia, e conheceu meu avô Francisco numa propriedade no
interior de Codó, chamada “Boa Vista”. Meu avô, por sua vez, era um homem de
instrução abreviada, não me lembro se ele havia concluído o ensino fundamental,
mas nada obstante tudo isso, era trabalhador nato, homem de caráter prático e
silencioso.
O
velho não gostava de futebol, não era feito ao consumo de bebidas alcóolicas, tendo
como vício, em demasia, a vontade de procurar prazer em casos extraconjugais. Talvez
essa seja minha maior queixa sobre quem era o meu avô: o fato dele ser infiel
com a minha avó, que era naquela época era a minha bússola moral...
Se
minha vó era superprotetora, meu avó era totalmente o oposto. Na realidade, os
dois eram bem diferentes em tudo. Enquanto minha vó vivia com um olho na vida
eterna, meu avô era totalmente mundano. Se com um deles eu aprendia a rezar, a ser
disciplinado no credo católico, o outro me deixava livre na caçamba de sua D20,
enquanto ele cruzava as ruas acidentadas de Codó. Meu velho foi a minha figura
paterna definitiva. O seu silêncio enquanto dirigia a sua D20, e a suas conversas
com outros velhos em quitandas vagabundas, foram recordações que guardo até hoje. A sua caminhonete
velha, o seu zelo com ela, o seu silêncio. Esse era o meu avô Francisco.
Emocionante! Adorei.
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