Ideias matam: uma divagação sobre Crime e Castigo, nacionalismo e moral.





Ideias são aglomerados de palavras, conceitos maturados no nosso claustro psíquico, e que, não raras vezes na história humana – se é que há uma história universal, e não uma colcha de retalhos de casos singulares – possuem um caráter belicoso, tais como o nacionalismo, centrado na ideia de que há povos de um passado histórico superior a outros. Ora, a bem da verdade, o que quero dizer ao amigo(a) leitor(a), ainda que seja num tom retórico nessas linhas iniciais, é que as ideias matam.
As ideias são como a pólvora próximo a um vulcão chamado mente humana. Vejamos o caso do já citado nacionalismo, que no final do séc. XIX e começo do XX fomentou duas grandes guerras mundiais, na ideia inicial do neocolonialismo, na supremacia de um determinado povo eleito, da raça ariana... o leitor(a) pode achar que estou focando minha tese apenas numa concepção politico-racial de que as ideias são perniciosas. Porém, digo mais. Ouso ir adiante. Lembre-se de um caso clássico na literatura universal, o do célebre – e por que não desgraçado? – Romanovich Raskólnikov, que, do ápice de suas elucubrações, na miséria de um quarto minúsculo elabora e defende a tese de  que a humanidade estaria dividida entre duas classes de homens, por assim dizer: o homem ordinário, isto é, aquele que se sujeitaria as leis, ao padrão social posto, ao status quo; e o seu contraponto, o homem extraordinário, aquele que estaria moralmente além das convenções de um reles convívio social, aquele representado nos Napoleões, nos Faraós, nos Césares etc.,  capazes até mesmo de matar outrem sem que isso fosse realmente um crime[1]...
Ora, as ideias do febril ex-estudante de direito Raskólnikov representam nada mais do que a consagração daquilo que se defende no presente texto: as ideias matam. Pois, conforme a tragédia russa sob comento, é munido dessa sua tese de que há essencialmente homens ordinários e extraordinários, que o protagonista da tragédia russa Crime e Castigo, acabar por desferir golpes mortais de machadinha contra uma velha usurária, e, por revés do destino, acaba matando na sequência a irmã da vítima. No caso, o homicídio é perpetrado para comprovar a tese ou, melhor dito, a ideia de Raskólnikov de haveria um classe de indivíduos que estaria além das convenções tão banais da sociedade.
Portanto, não causa estranheza a célebre frase de Friedrich Wilhelm Nietzsche[2] no seu autobiográfico Ecce Homo, quando escreve: “Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido” (p.102). Tal trecho ajuda a elucidar, de modo incisivo e explicito, conforme a escrita mordaz nietzscheana de que ideias são revolucionárias, perigosas e capazes de subverter os valores postos – no caso de Nietzsche, há aqui uma tresvaloração de todos os valores, um rompimento com toda a tradição filosófica que até então havia na Europa do seu tempo.
Assim, em sede de desfecho, evitando-se que este texto se estenda, reitero: as ideias matam.  Ideias são baionetas prestes a serem cravadas no corpo do inimigo, que, não raras vezes, é aquele que as contrapõe – naturalmente, sua antítese. 


Ps.: O (a) leitor (a) poderia arguir, em sede de contestação, que olvidei pontos importantes, com o a teoria do  absurdo, apregoada por Albert Camus, contudo, esse debate é merecedor de um texto próprio, haja vista que trata de uma negação de que as ideias são racionais e acaba por ser um convite a exploração dos tortuosos caminhos da desrazão humana. 




[1] Em verdade, é bom que se entenda que a tese de Raskólnikov legitima o homicídio no plano moral, mas não, como, por conclusão precipitada poder-se-ia pensar que há um direito ao crime. A observação é salutar, pois ajuda a compreender o sentimento de culpa que mais tarde irá corroer o homicida.
[2] De modo rápido, frise-se que, o filósofo alemão possui o conceito de Ubersmensch, conceito que coaduna com o de Raskólnikov, mas que, dado a profundidade da discussão que suscita, ficará para outro texto.



O sono da razão produz monstros, gravura de Goya.





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