Artigo sobre o Renascimento Italiano.
Studia
humanitatis: vicissitudes e permanências no
Renascimento Italiano.
Thiago Silva
Cruz e Cunha[1]
RESUMO
O ensaio a seguir
discorrerá sobre as especificidades do Renascimento Italiano, não só enquanto
movimento artístico, mas também como movimento cultural que trouxe, em sua
essência, rupturas e permanências nas mentalidades dos intelectuais engajados,
entre os séculos XIV e XVI.
ABSTRACT
The essay with dicuss about some especificities on the
italian renaissance, not only any artistic moviment, but like any cultural
moviment that in your essence, gave ruptures and permanences on the
intellectuals mentalities, between the centuries XIV and XVI.
INTRODUÇÃO
Abordando
concisamente os vários temas referentes ao Renascimento na península itálica,
haverá no presente texto, uma ênfase na dualidade de valores entre, cristianismo
e paganismo, no ideal de recuperar-se a arte e literatura clássica através da
imitação e aperfeiçoamento dos antigos romanos, assim como um enfoque na
língua, literatura e instrução – ideais norteadores da bonae litterae –, sem negligenciar os valores estéticos contidos na
arquitetura, pintura e escultura. Portanto, dir-se-á que o teor do ensaio é,
antes de tudo, um convite às sensibilidades de uma época longínqua, por meio de
uma análise das contradições entre um movimento cultural que almejava reviver
os tempos clássicos, mesmo sabendo do fosso temporal existente entre: presente
e passado. Por último, resta destacar os apontamentos e reflexões provenientes
da leitura dos textos dos professores Peter Burke[2], Modesto
Florenzano e Jean Delumeau.
1 – A verve renascentista.
“O
Renascimento, como Janus, o deus romano, tinha duas cabeças e, paradoxalmente,
nenhuma das duas, não foi capaz de fazer nascer o chamado pensamento racional,
científico e com ele a idéia de progresso e uma nova atitude e visão diante do
homem, da natureza e da história, e, em conseqüência, pelo menos no plano
intelectual, de cristalizar a modernidade.” [3]
“Não
devemos ver o Renascimento como uma “revolução” cultural no sentido de uma
súbita quebra com a tradição. É mais exacto pensar neste movimento como um
desenvolvimento gradual no qual cada vez mais indivíduos se tornaram
progressivamente insatisfeitos com os elementos da sua cultura em finais do
período medieval e cada vez mais atraídos pelo passado clássico.“ [4]
É escusado dizer
que o Renascimento foi um movimento cultural que, primou pela perfeição das formas
geométricas, fossem elas na pintura, na arquitetura e escultura. Porém, o que se esquece
quando a palavra Renascimento vem à tona, é todo um projeto de reviver a
literatura clássica, isto é, a instrução renascentista visava o resgate dos
saberes antigos, visto que estes estavam sob o julgo dos longos anos da Idade
Média (tenebrae). Sendo antes de
tudo, filólogos e artistas, os italianos, que encabeçaram o Renascimento eram
indivíduos inteiramente cônscios do seu papel na história, pois, “o
Renascimento sabia que era renascentista ao passo que a Idade média (...) nunca
soube que era medieval”.(FLORENZANO, 1996, p. 26). Assim sendo, críticos do seu
agir no tempo, os italianos do Renascimento redescobriram o latim clássico nos
gêneros literários da Roma antiga, legados a posterioridade, e refutaram
veemente o latim “bárbaro” proferido durante a Idade Média, visto que, este era
considerado deturpado – o conhecimento linguístico dos eruditos renascentistas
avançou de tal modo que, um filósofo, no séc. XVI, Pietro Pomponazzi,
questionou a má interpretação de S. Tomás de Aquino, afirmando que este havia
lido Aristóteles erroneamente, além do fato que, S. Tomás nunca lera a
filosofia peripatética no original grego, o que dava margem as discrepâncias
semânticas quanto o teor da tradução lida pelo doutor da Igreja na escolástica
medieval.
Seguindo a
chamada educação humanista, durante o Renascimento houve a difusão da tese de
que, o estudo das linguagens como, gramática, retórica e ética, possibilitavam
um aperfeiçoamento do homem, assim como também a linguagem atuava como fator
determinante da “condição humana”, pois, os homens diferiam dos animais por
causa de sua fala, da língua proferida. Daí surgiu o projeto humanista, visando
o aperfeiçoamento do homem, de se estudar as “humanidades”.[5] Por
meio do culto ao latim clássico, simbolizando à bonae litterae, houve o destaque do humano, do demasiado humano. Então,
há o posicionamento do mundo exterior em consonância com o homem, cada vez
mais, privilegiado nos estudos eruditos.
Entretanto, o
Renascimento não englobou apenas a literatura, e as outras artes mecânicas
(arquitetura, pintura etc.), mas também englobou as filosofias naturais, ou
seja, aquilo que atualmente chama-se “ciência”. Humanistas como, Leonardo da
Vinci, Bruneleschi e Alberti, exploram as áreas do conhecimento de uma natureza
mais pragmática, tendo uma orientação mais empírica nos seus estudos e análises
da matemática, medicina (anatomia), astronomia e astrologia. Portanto, é
mister, conceber o Renascimento como um movimento multifacetado, com indivíduos
versáteis no seu modo de “descobrir o mundo”. Um período em que, falava-se,
lia-se e escrevia-se em latim, onde se buscavam traduções exatas dos textos
antigos, e imitavam-se as obras de Virgílio e Cícero como modo de aprender as
artes legadas à posteridade.[6]
2 – Um movimento híbrido e, essencialmente,
italiano.
Dir-se-ia que os
humanistas italianos “preocupavam-se com aquilo a que chamavam a corrupção da
língua e o declínio das artes depois da invasão da Itália pelos bárbaros”.
(BURKE, 2008, p. 31), porém, em verdade, o seu demasiado zelo pelos saberes dos
antigos romanos acabou acarretando numa idealização de um passado, pois, a
ideia de ressuscitar Roma antiga, baseando-se no mito do regresso ao passado,
era na realidade um devaneio que permeava o projeto engendrado pelos humanistas
na ideia de tornarem-se “novos Romanos”. Homens como, Maquiavel e Petrarca,
nutriam tanto entusiasmo pelos escritos clássicos que, ao debruçarem-se sobre
tais escritos, criam plenamente na possibilidade de um diálogo com os grandes
sábios romanos. Maquiavel mantinha um diálogo “pessoal” com os clássicos, e
Petrarca redigia cartas para Cícero. A redescoberta dos clássicos,
inicialmente, por meio da vanguarda de Petrarca que, ao lançar um olhar sobre
as ruínas deixadas pelos antigos romanos e, constatar o melancólico cenário do
presente, comparado-o ao glorioso passado, acabou gerando aquilo que o
professor Florenzano[7]
denomina de uma verdadeira revolução copernicana no modo de se conceber a
disparidade, entre o passado romano (antiquas),
e ao presente (media-etas). Da
constatação apurada de Petrarca[8],
houve um deslocamento no olhar teórico de se observar o passado pagão dos
antigos romanos, e o desolador presente cristão. No entanto, a crescente
rejeição dos elementos da cultura medieval, acabou mesclando-se com aquilo que
os humanistas pensavam ser a tão admirada Antiguidade, uma vez que os erros de
periodização resultavam na compreensão equivocada dos tempos antigos, com
aquilo que na realidade, era o primórdio do período medieval – e aqui é bom
ressaltar a consciência histórica e sistemática de Vasari, no século XVI, visto
que, seu trabalho resultou na divisão do Renascimento em três períodos
históricos, em que um período continuava e aprimorava o plano do antecessor;
são estes os períodos criados por Vasari: Primeiro Renascimento, Segundo
Renascimento e Terceiro Renascimento.[9]
Como era fruto
de duas culturas bem distintas, e carregava valores conflitantes, o
Renascimento nasceu entre elementos cristãos e clássicos. Os humanistas
almejavam ser “cristãos não veneradores de deuses pagãos”, o que gerava uma
dualidade no âmago do movimento revivalista,. O sonho de reviver o sistema
político, econômico e social dos antigos romanos, levou até uma constatação dos
limites da imitação entre aqueles que idealizavam um retorno ao passado, assim
como tal revivalismo sempre foi delimitado por usos de alegorias ao tratar dos
costumes pagãos, estabelecendo que, por mais entusiasmado que fosse a vontade
recuperar a “Antiguidade não se queria substituir ao Cristianismo” (BURKE,
2008, p.40). Além dos mais, a “imitação”, que era a mola mestra do movimento
renascentista, nem sempre era aplicada em todas as áreas, e também era fruto de
controvérsias entre os artistas italianos. No caso da música e da pintura,
inexistiam obras ou tratados da Antiguidade em que os artistas pudessem se basear
o que acabava impelindo os artistas a serem genuínos, inovadores – usando-se um
apontamento de Delumeau, a civilização do renascimento era essencialmente
original, pois, mesmo tendo um constante olhar voltado para os antigos romanos,
essa civilização, renascentista, gerou uma cultura e uma arte inédita.
Portanto, todo o
espírito de redescobrir nas ruínas deixadas pelos antigos romanos, a aurora de
uma nova civilização intitulada de Renascimento, é um fenômeno histórico que é,
essencialmente, italiano. A razão de tal afirmação consiste no fato de que, na
Itália a tradição dos clássicos sempre estiveram presente entre os seus
conterrâneos, soma-se a isso que, o local onde os feitos realizados outrora
pelos antigos romanos tiveram sua origem no seio da própria península itálica,
e a cultura que enfatizava-se mais no resgate, era cultura latina e não a
grega; o que corrobora a tese de Peter Burke quando ele afirma que, “Não parece
acidental o facto de a reabilitação da Antiguidade ter começado em Itália,
precisamente no mesmo lugar onde tais acontecimentos tiveram origem.” (BURKE,
2008, p. 42). Ora, para compreender-se como um movimento tendo sua gênese no
norte da Itália, e foi ganhando força ao longo dos séculos XIV, XV e XVI, em
que no último século irradiaria para toda a Europa, é essencial compreender-se
outra tese de Peter Burke. No caso, tais teses firmam-se em três pontos: a
geografia, cronologia e sociologia do renascimento italiano. Abordagens
utilizadas por Burke com a finalidade de especular sobre o cerne da verve
renascentista.
“Não
há dúvida de que o Renascimento recuperou, de certa forma, os valores do mundo
greco-romano. Mas, ao mesmo tempo, tomou consciência do intransponível fosso que
o separava daquele mundo. Interpondo a densidade dos ‘tempos obscuros’ entre a
Antiguidade e a nova idade de ouro, o Renascimento atirava definitivamente para
o passado, como algo volvido, uma civilização na qual desejava inspirar-se, mas
que lhe era impossível ressuscitar.” [10]
3
– Conclusão
Tendo trazido à
baila os estudos da Antiguidade, os humanistas redescobriram uma Antiguidade
romana, mas que também comportava elementos da cultura grega – aqui, deve-se
enfatizar a vinda para a Itália de sábios do oriente, antes mesmo da tomada de
Constantinopla pelos turco-otomanos. A ânsia por conhecimento desses homens na
busca pelo desenvolvimento das faculdades cognoscíveis possibilitou o estudo da
filosofia platônica, até então olvidada; e sempre almejando uma Antiguidade
autêntica, os humanistas italianos estabeleceram uma postura vanguardista. Os
esforços de romper com a tradição medieval, fez com que a harmonia e a
proporcionalidade irradiassem sobre toda a escultura e a pintura do
Renascimento – assim como a arquitetura, baseada nos estudos de Vitrúvio,
trouxe a aura da arquitetura antiga até os monumentos revivalistas italianos.
Todavia, o Renascimento apresentou seus erros no modo de interpretar a cultura
dos antigos romanos e gregos, uma vez que, estes humanistas dos séculos XV e
XVI, apresentaram muitas vezes, uma deficiente cultura histórica, isto é, estes
indivíduos partiam do pressuposto, equivocado, da Antiguidade como um todo –
não atentando para a longa duração do imenso recorte de temporal que consistia
num milênio. “a Antiguidade, mesmo na Itália, era conhecida de forma apenas
superficial. Da Vinci e Miguel Ângelo ignoravam o latim.”(DELUMEAU, 2004, p.
103).
Não obstante, as
idealizações do passado e os erros teóricos na busca pela autenticidade da
Antiguidade, o Renascimento italiano legou notáveis descobertas arqueológicas,
como as estátuas de Adónis, o Laocoonte, a loba de bronze etc. Tais obras
permaneciam abertas aos públicos, ainda que fossem bens privados, mas sempre
expostas aos visitantes mais cultos e desejosos de contemplá-las. Logo, o
Renascimento foi um movimento fervoroso de resgate aos valores clássicos, mas
que não conseguiu, nem quis, extirpar os presentes valores cristãos. Foi um
movimento que pertencia a duas culturas distintas, e separadas por um fosso
temporal. Trazia no cerne esses dois valores, e por isso, paradoxalmente, não
foi de nenhum de outro, foi essencialmente original.
4 – Bibliografia
BURKE, Peter. O Renascimento. Lisboa: Edições texto e
grafia, 2008.
DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa:
Edições 70, 2004.
FLORENZANO,
Modesto. “Notas sobre tradição e ruptura
no Renascimento e na Primeira Modernidade”. Revista de História, vol. 135 (1996), pp. 19-30.
[2]
Mais especificamente,
utilizou-se o capítulo 2. Itália:
revivalismo e inovação, do livro O
renascimento, do autor em questão, assim como em Delumeau foi utilizado o
capítulo III. Renascimento e antiguidade, do livro A civilização do Renascimento.
[3]
FLORENZANO,
Modesto. “Notas sobre tradição e ruptura no Renascimento e na Primeira
Modernidade”. Revista de História,
vol. 135 (1996), pp. 19-30. pp. 28.
[4]
BURKE,
Peter. O Renascimento. Lisboa:
Edições texto e grafia, 2008. pp. 41.
[5]
Vale ressaltar que o
vocábulo “Humanismo”, apesar de ser “um termo bem elástico, com diferentes
significados para diferentes pessoas” (BURKE, 2008, p. 25), começou a ser
utilizado no século XIX na Alemanha para taxar um sistema instrutivo que
primava pelo estudo dos clássicos. Todavia, outra vertente de estudos concebe o
surgimento do vocábulo no séc. XV, através de um calão estudantil dado aos
professores acadêmicos que ministravam as “humanidades”, os studia humanitatis – nome também dado ao presente artigo.
[6]
Caso peculiar, o do
humanista Carlo
Sigonio, que no
século XVI disse ter “descoberto” uma obra de Cícero que havia sido extraviada,
mas que depois se constatou que era uma criação sua.
[7] FLORENZANO,
Modesto. “Notas sobre tradição e ruptura no Renascimento e na Primeira
Modernidade”. Revista de História,
vol. 135 (1996), pp. 19-30. Consultar, em especial, a página 25 de onde o
pensamento em questão é proveniente.
[8]
Como dissera Peter Burke no
livro O Renascimento, Petrarca, longe
de ser um genuíno homem moderno, em verdade, era um filho da cultura medieval
tardia. É deveras importante ressaltar essa dualidade existente entre um dos
idealizadores do humanismo renascentista – o famigerado restaurador do studia humanitatis –, porque daí
infere-se a dualidade de todo um movimento cultural figurado em Petrarca, o
maior expoente do renascimento; um individuo
repleto de valores de dois mundos distintos, o moderno – segundo Delumeau, o
período da barbárie –, e o passado romano – período apaixonadamente lembrado
por uma “saudade” de feitos que não voltam mais.
[9]
Como fora dito
anteriormente, o Renascimento possuía plena consciência do seu papel
desempenhado em sua época. No caso da periodização criada por Vasari, este
pintor e arquiteto de sólida instrução humanista, houve a interpretação de que,
no séc. XIII, os artistas toscanos deram inicio ao processo de cópia e
assimilação da arte dos antigos, já no séc. XV, houvera a busca pela imitação
da natureza, com ênfase nas obras dos artistas Massaccio e Donatello, e por
fim, no séc. XVI, a perfeição artística do movimento tinha alcançado tamanho êxito
que, era presumível um declínio do movimento Renascentista.
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